Vou contar-lhes um pouco mais da saga de minha família. Sim, uma família forte, com histórias fortes, às vezes tristes e outras felizes. Há episódios e episódios, como o dia em que meu irmão mais velho colocou fogo no pasto e o fogo se alastrou por uma plantação de arroz do vizinho. Mas essa eu conto depois.
Eu fui uma criança muito feliz. Sou a caçula de dez irmãos. Imagine!!!
E como nasci bem tarde, meus sobrinhos acabaram sendo também meus irmãos. Tínhamos idades muito próximas.
Nasci em Piranema, um antigo distrito de Itaguaí, hoje pertencente a Seropédica. Vivi durante boa parte da minha vida nesse lugar. Ainda me emociono quando passo por lá. Vejo o hospital onde nasci, a escola em que estudei, os lugares onde brinquei...
Mas meu tempo de Itaguaí começou mesmo após uma grande perda. A morte de minha irmã Cenyr.
Cenyr, segundo informações de minha mãe, foi a quinta filha a nascer. Não me lembro muito dela, mas minha mãe diz que quem me dava comida era ela. Sempre comigo ao colo. E foi assim que, num dia de domingo, caminhamos para a Igreja.
Para chegar à Igreja minha família percorria mais ou menos oito quilômetros pela estrada principal. Como eram muitos filhos e não havia dinheiro para o transporte de todos, iam à pé. E assim foi.
Acordaram cedo, vestiram suas melhores roupas. Afinal era Dia do Senhor. Cenyr me arrumou, uma menina de 03 anos, e ajudou minha mãe com os preparativos para que todos saíssem na hora certa, a tempo de chegarmos ao culto sem atrasos.
Saímos. Minha mãe, minha irmã Cely, minha irmã Cenyr comigo ao colo. Atrás vinha meu irmão Edson. Cenyr estava na ponta, à beira da estrada. Conversavam trivialidades, cantavam hinos e caminhavam para a igreja. Cenyr era pianista. Tocava nos cultos. Seus passos e sua voz marcavam o mesmo ritmo. Sua risada ressoava naquele silêncio matinal.
Quase chegando ao nosso destino, Cenyr pediu que minha mãe me segurasse. E foi apenas o tempo de me passar para o colo de minha mãe. Um segundo, quase imperceptível, um carro... poeira... e Cenyr estendida no chão aos nossos pés. Tinha apenas 16 anos.
Meu irmão que estava atrás correu, minha mãe se desesperou... Ele contou... Um carro!!! Eles estenderam a mão e puxaram o cabelo dela... Ela tombou...
Sua Bíblia ao chão... seu hinário ao chão...
Meu irmão correu até à igreja para avisar meu pai. Ele havia saído pouco tempo antes de nós. Era diácono. Precisava estar na igreja antes de todos, ajudando a preparar o culto.
Minha mãe, depois desse baque, não suportou mais ficar em Piranema. Procuraram uma casa e encontraram em um bairro do Rio chamado Senador Camará. Vivi ali até os 09 anos.
Mas esse é outro capítulo da saga dos Tinoco e Costa.
Eu tenho uma vaga lembrança do enterro de minha irmã. Lembro que estava no colo de alguém e chamava pelo nome dela. Mas as tristezas reais que envolveram esses fatos estavam longe de uma menininha de 03 anos. Entretanto os danos causados até que a dor permanecesse ali, naquele lugar onde as dores permanecem, mentindo que foram esquecidas, eu pude presenciar e viver. Eu e minha mãe fomos muito companheiras a partir daí. Não tínhamos abundância, não tínhamos brinquedos caros, não tínhamos roupas caras... Meu pai permaneceu em Piranema onde trabalhava e minha mãe seguiu para Senador Camará com os filhos que ainda eram solteiros.
Mas éramos felizes. As coisas simples nos faziam sorrir. Eu e Sérgio, ainda crianças, inventávamos brincadeiras com o que tínhamos. Um bambú com uma corda amarrada era o nosso cavalinho de pau. Uma lata de leite em pó com areia, furada nas laterais, com um barbante atravessando, era nosso trem. rsrsrs
A dor, eu imagino, era quase insuportável, mas via minha mãe ajoelhada orando por seus filhos todos os dias.
Aprendi todas as histórias da Bíblia através dela. Ela as contava todos os dias quando me colocava na cama para dormir.
Lia versos para mim até que eu os decorasse e quando isso acontecia, eu os recitava nos cultos.
Minha irmã Cely me ensinou a ler nos gibis que comprava. Era feliz... sem saber que a felicidade às vezes nos custa caro. Mas a dor nos ensina a ver o mundo de outra forma, com mais calma, mais vagar.
A dor nos ensina a ouvir o silêncio, a sentir as notas da quietude.
Anos depois, escrevi em minha Bíblia uma frase que li no Mananciais no Deserto. Era uma jovem então, tinha 21 anos.
"Todas as coisas vêm à mão daquele que sabe confiar e estar quieto".
Hoje, apenas oro para que Deus me use todos os dias em auxílio a outros. Que eu possa, das minhas dores, das minhas alegrias trazer palavras de ânimo e vigor.