Sou fã de desenhos animados. Gostava muito de um e sempre que podia estava lá, em frente à TV. Thunder Cats. Esperava que Lion, o líder, levantasse sua espada e dissesse: "Espada justiceira, dê-me a visão além do alcance".
Quando li a reportagem sobre o Dr. Ricardo Tadeu, instantaneamente a frase de Lion me veio à mente. Isso sim, é a visão além do alcance.
Não pelo fato de toda a abordagem em torno de sua deficiência visual e de sua nomeação por Lula, mas porque posso ver. Sim, está mais ligado ao que tenho diante dos meus olhos e dos limites impostos por aquilo que quero enxergar. Limites, entendam, que nós mesmos fixamos.
E a frase de Lion ressoou em meus ouvidos, vinda lá de um canto qualquer das lembranças.
Não há mesmo limites que possam impedir a vontade e sua força motriz.
Em uma de suas entrevistas, li a frase que fez e continua fazendo toda a diferença no momento em que escolhemos nossos caminhos.
"Sempre quis ser juiz. Realizei um sonho"
Pelo que se lê a seu respeito, o atual Desembargardor do TRT da 9ª Região, Dr. Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, nunca se intimidou diante de obstáculos. Nasceu prematuro, sofreu paralisia cerebral e em decorrência disso ficou com deficiência visual.
A mãe, Genny, exigiu que o filho tivesse oportunidades iguais às de outras crianças, na escola, quando poucos falavam em inclusão educacional.
No terceiro ano de direito, aos 23 anos, perdeu toda a visão, e os colegas passaram a gravar leituras do conteúdo dos livros e das aulas para ajudá-lo. Pouco tempo depois, formou-se pela Universidade de São Paulo (USP).
Não parou por aí.
Iniciou a prática da advocacia em 1983, prestando assistência judiciária no Centro Acadêmico XI de Agosto, em São Paulo. Depois de formado, em 1984, advogou em um escritório especializado na área trabalhista.
Em março de 1987, foi nomeado assessor do Dr. Oswaldo Preuss, Juiz do TRT da 15ª região.
Fez mestrado e doutorado.
Conheceu a discriminação ao ser impedido de prestar concurso para juiz do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo.
Ricardo Tadeu não desistiu. Prestou concurso em outro Estado.
Ingressou na carreira do MPT em 17/12/1991, após a conclusão do 3º Concurso do MPT, em que obteve a 6ª colocação.
Manteve-se atuando na 15ª região, em Campinas. Em 1994, foi promovido a Procurador Regional do Trabalho. Atuou como custus legis até 1995 e na 1ª instância até 1999. Passou, então, a exercer a função de procurador-chefe daquela regional até o ano de 2002, período durante o qual iniciou o processo de interiorização do MPT, com a instalação da então sub-sede de Bauru/SP.
Ainda em 2002, com a autorização do CSMPT, mudou-se para Curitiba para cursar o doutorado na UFPR, o que, em 2003, deu azo a sua transferência para a 9ª região, onde, a partir de 2005, passou a atuar no Núcleo de Combate à Discriminação.
O MPT sempre lhe proporcionou muitas alegrias e realizações. Atuou no combate ao trabalho infantil, na regularização do trabalho de adolescentes, no combate às cooperativas fraudulentas de mão de obra, em questões de meio-ambiente de trabalho, no combate à discriminação no trabalho e, desde março de 2009, na Coordenadoria de Segundo Grau.
Ao longo de seu trabalho, publicou diversos textos sobre temas correlatos às suas atribuições de Procurador, dentre eles um livro, o qual leva o título de sua tese de doutorado: "O Trabalho da Pessoa com Deficiência e a Lapidação dos Direitos Humanos".
Sua dissertação de mestrado, sustentada na Universidade de São Paulo, lançou as bases teóricas para a elaboração e edição da lei 10.097/00, de cuja redação participou. A referida lei alterou a CLT no capítulo da aprendizagem.
Colaborou na redação do decreto 3.298/99, que passou a regulamentar o trabalho das pessoas com deficiência. Presidiu uma comissão nomeada pelo COLEPRECOR (Colégio dos Presidentes e Corregedores dos Tribunais Regionais do Trabalho), para implantar LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) no judiciário trabalhista.
Atuou na ONU, juntamente com a delegação brasileira, para a redação da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência daquela organização, norma que o Brasil ratificou em agosto de 2008, com status constitucional. Participou junto ao CONADE e ao Congresso Nacional, como observador do MPT, para que tal ratificação ocorresse.
Durante toda sua carreira, proferiu palestras pelo Brasil. Em 2004, falou no Banco Mundial, em Washington D.C., sobre a atuação do Ministério Público do Trabalho na inserção da pessoa com deficiência no mundo laboral em nosso país.
Como participante do Núcleo de Combate à Discriminação, propôs a idéia de se adotar o contrato de aprendizagem para as pessoas com deficiência, por meio de convênios entre ONGs, Sistema "S" e empresas, visando qualificar esses trabalhadores no ambiente de trabalho, o que se tornou política pública do MTE. Sobre o tema, propôs o texto da lei 11.180/05, que rompeu o limite máximo de idade para aprendizes com deficiência.
Em 7/7/2001, recebeu Comenda de Honra ao Mérito, ofertada pelo então Presidente do TST, ministro Almir Pazzianotto Pinto, por indicação da população do Município de São Carlos/SP. Recentemente, foi distinguido, com a indicação do Presidente da República, para concorrer a uma vaga de delegado do Brasil no Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU. Foi também agraciado pelo Ministro do Trabalho com a condecoração da "Ordem do Mérito do Trabalho Getúlio Vargas".
Parte de uma entrevista à Revista Sentidos, no ano de 2007:
O que significou ficar cego meses antes de se formar advogado?
Eu tinha 23 anos. Estava no terceiro ano da faculdade de direito da USP. Achei que não conseguiria terminar o curso. Meus amigos não me deixaram desistir. Cada um escolheu uma disciplina e gravou o conteúdo de livros e aulas para eu estudar. Isso marcou minha vida definitivamente. A turma fez questão que eu me formasse junto com ela. Descobri que poderia fazer o que quisesse.
Enfrentou dificuldade nos estudos?
No começo, precisei de métodos especiais por ter baixa visão. Fui alfabetizado em casa, por minha mãe. Nunca estudei muito braille. Ainda criança, mudamos para Porto Alegre, onde tive o privilégio de estudar em uma escola que já era construtivista nos anos 60. Foi difícil voltar a São Paulo (no meio da 7ª série). A escola não assumiu minha condição. Já que os professores não me ensinavam, resolvi bagunçar. Recomendaram, então, que eu fosse para a escola Padre Chico- especial para cegos. Minha mãe discordou e matriculou-me em uma escola regular. Mas acabei entrando na USP.
O vestibular foi acessível?
As provas foram gravadas em fita. Eu respondia colando o rosto na folha de questões. Já na faculdade, senti dificuldades concretas porque precisava ler mais. Tive de contratar ledores a fim de estudar para concursos - e fazer mestrado e doutorado. Opto por ter a ajuda de pessoas que lêem pra mim, porque apesar de hoje haver programas de acessibilidade para computador, falta tempo para digitalizar tudo. Sempre tive de investir recursos para estudar.
No trabalho acontece o mesmo?
Também preciso de alguém para ler. Uma pessoa em quem confio, que lê e escreve o que eu dito. Trabalho com um analista processual designado pelo Ministério Público. Lido com documentos (em papel) de 200 inquéritos e processos civis. Combatemos a discriminação profissional: questões como assédio moral, racial, sexual, e em critérios de promoção. E fiscalizamos o cumprimento da Lei de Cotas.
O que é preciso fazer para garantir o cumprimento das cotas?
Optamos, primeiro, por audiências públicas para estabelecer um procedimento administrativo de acompanhamento de cada empresa. Cerca de 90% dos casos resolvemos assim. Para os outros 10%, é preciso entrar com ações. A Justiça tem acolhido as solicitações e estabelecido multas pesadas.
Alguma vez foi beneficiado pessoalmente pela Lei de Cotas?
A lei não existia quando me formei (1984) nem quando prestei concurso (1991). Mas nem precisaria. Fui aprovado em quinto lugar, e fiquei em terceiro por titulação, entre 5 mil candidatos no concurso do Ministério Público. Era comum eu não ser contratado. Me chamavam por causa do currículo, mas o pessoal do RH ficava atônito ao me ver chegar. Em 1987, fui contratado por um juiz do Tribunal do Trabalho de Campinas, Osvaldo Freeus, como assessor para a elaboração de acórdãos (decisões de segundo grau na Justiça). Em 1990, estimulado por ele, decidi prestar concurso para juiz no Tribunal do Trabalho de São Paulo, mas fui impedido.
Como isso aconteceu?
Minha inscrição como cego foi aprovada. Passei nas duas primeiras provas, a de múltipla escolha e a dissertativa. Antes da última prova, que previa elaborar uma sentença - coisa que eu fazia havia três anos - o Tribunal decidiu antecipar meu exame médico. Só o meu. Com base em um laudo médico que atestava minha cegueira, me impediram de realizar a prova.
O que alegaram?
Que eu não poderia ver documentos nem tampouco a expressão de réus e testemunhas. Mas posso avaliar a oscilação vocal melhor que um vidente. Juízes, quando recebem documentos em língua estrangeira, precisam de um tradutor juramentado que o leia em seu lugar. O ledor, acredito, cumpre a mesma atuação. A postura do tribunal foi violenta. Decidida pela comissão de concursos e confirmada pelo presidente do TRT.
Foi uma decisão preconceituosa. Na época fiquei abalado. Mas não guardo mágoa. Hoje (2207), sou convidado a entrar na magistratura pelo Quinto Constitucional, o que muito me honra.
Pretende aceitar o convite?
Estou feliz como Procurador de Justiça e ainda não tenho essa intenção. O que aceitei foi compor a banca de exame oral para concurso de juízes em Curitiba. É a última prova, a mesma que fui impedido de fazer! Agora há leis que impedem as comissões de dizer de antemão se um candidato pode ou não prestar esse concurso.
Como avalia o valor do trabalho?
Vivemos na sociedade do trabalho. O que você realiza passa ser a sua identidade. Mas o direito ao trabalho está em crise. Muitos defendem a redução dos direitos laborais. Discordo. O trabalho não é mercadoria, algo que se compra e vende. Tanto o direito ao trabalho e os direitos do trabalho dizem respeito à dignidade, que luto para preservar contra a ganância do mercado. Não quero combater o lucro e a livre iniciativa, longe disso. Defendo o trabalho como empregado, autônomo, empreendedor. Ele é inerente à dignidade humana e proporciona independência, autonomia, capacidade de realização. Quando luto para cumprir a Lei de Cotas, quero reconhecer o direito de todo cidadão à dignidade.
Convite feito, convite aceito.Decidiu concorrer à vaga para desembargador pelo Quinto Constitucional, depois de 18 anos de atuação no Ministério Público do Trabalho. O Procurador do Ministério Público do Trabalho tem seu sonho realizado. Será juiz.
Foi nomeado no último dia 17, pelo Presidente da República, para integrar o TRT da 9ª Região.
E aí??? Ainda pensa em desistir de seus sonhos? Ainda acha que não há mais o que ver?
Diferentemente de Lion, não temos uma espada mágica, mas temos mais. Temos a força motriz, lembra? Que essa força seja a nossa espada e que por meio dela possamos alcançar além do que os nossos olhos podem ver.
Fontes:
http://www.bengalalegal.com