Recebi um e-mail interessante, como tantos outros que recebo. Por herdar um pouco de Tomé, fui pela internet em busca da fonte, da origem do texto. Depois de algum tempo vasculhando as decisões no TJ-SP, encontrei, enfim, o que procurava e aí, certa dos fatos, resolvi compartilhá-los com você.
No e-mail havia uma decisão de um determinado desembargador de São Paulo em uma ação de indenização. Um menor, filho de marceneiro que morreu depois de ser atropelado por uma motocicleta na volta a pé do trabalho, representado pela mãe, solteira e desempregada e por advogado, requeria em juízo, pensão de um salário mínimo mais indenização pelo dano moral que sofreu. Pediu gratuidade para demandar, mas esta lhe foi negada por não ter provado que era pobre e por não ter peticionado por intermédio de advogado integrante do convênio OAB/PGE. Inconformado com o indeferimento do pedido, interpôs agravo de instrumento.
O recurso, distribuído à 36ª Câmara do D.OITAVO Grupo (Ext. 2° TAC), por sorteio, foi parar nas mãos do Desembargador Palma Bisson, relator. Eis o teor da decisão:
"É o relatório.
Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.
Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador - legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em pau-brasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido.
É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.
Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.
O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante.
E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.
Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.
Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular.
O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico.
Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.
Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo?
Quiçá no livro grosso dos preconceitos...
Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.
Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.
É como marceneiro, voto.
PALMA BISSON
Relator Sorteado"
Fonte: TJ-SP
Confira aqui a íntegra: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=3066015
0084039-57.2005.8.26.0000 Agravo de Instrumento
Relator(a): Palma Bisson
Comarca: Marília
Órgão julgador: 36ª Câmara do D.OITAVO Grupo (Ext. 2° TAC)
Data do julgamento: 19/01/2006
Data de registro: 30/01/2006
Outros números: 1001412000
3 comentários:
Prof. Raquel, linda decisão do Desembargador Palma Bisson, realmente é uma decisão que merece ser compartilhada. Emocionante, sem palavras!!!
Ass. Daniele Campos
Gentee..!! Que coisa mais linda esse texto do desembargador!
Realmente é impressionante!
Bj no coração Raquel.
Enxergar as palavras escritas com olhos e coração abertos é o verdadeiro caminho para que possamos fazer um julgamento justo e enxergar nas entrelinhas aquilo que não foi dito com a devida clareza. Parabéns ao julgador que não apenas se revestiu com o manto do saber e, muito mais com o manto do Amor divino existente em cada um de nós. Que DEUS continue te abençoando Dr. Palma Bisson. Atitudes como essa me faz, ainda, crer que podemos construir um mundo melhor e mais fraterno.
Um grande abraço e obrigada por compartilhar conosco Raquel.
Bjs no seu coração!
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